sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Nem rádio ou TV: notícias sobre a Copa, só pelos jornais!


Hoje é impossível imaginar a nossa vida sem televisão, internet ou redes sociais. A primeira Copa do Mundo de futebol foi disputada em 1930, no Uruguai, e para saber o resultado de um jogo só tinha uma alternativa: os jornais!!!! Os torcedores se amontoavam nas entradas das redações em busca dos placares das partidas. Mas você pode se perguntar:  e o rádio? Só a partir da Copa de 38, na França, os brasileiros puderam ouvir as transmissões dos jogos. Em 30, no Uruguai, e em 34, na Itália, não restava outra alternativa a não ser a informação trazida pela imprensa escrita.

Guerra entre paulistas e cariocas


Não tem como contar a história da participação da seleção brasileira em 1930 sem mencionar a rivalidade entre paulistas e cariocas que prejudicou o desempenho da equipe. Eram outros tempos. Tempos do futebol amador. A profissionalização só viria três anos depois. Essa reportagem da Folha da Manhã, publicada em junho de 1930, já traduzia o clima tenso entre São Paulo e Rio de Janeiro.


Por se tratar de um jornal de São Paulo, existe uma posição claramente favorável a Apea, a Associação Paulista dos Esportes Atléticos. A entidade estava em guerra com a carioca CBD, a Confederação Brasileira de Desportes, recém criada e responsável por levar a seleção nacional para a Copa. Os paulistas defendiam que a comissão técnica fosse composta por profissionais. A CBD era contra. Resultado: os clubes de São Paulo se negaram a ceder jogadores para a seleção. O único a fazer parte do time foi Araken Patuska. O atleta do Santos participou do mundial à revelia do clube. Azar da seleção que não contou com a força máxima. 

Arthur Friedenreich, um dos maiores nomes do futebol pré-profissional do Brasil, ficou fora da Copa. Aliás, por erros de contagem, o jogador chegou a ser registrado na Fifa com 1.329 gols (mais do que Pelé). O equívoco foi corrigido, mas ainda existe uma grande discussão se o atleta realmente marcou cerca de 500 gols na carreira (a contagem foi refeita com base em registros da imprensa na época). Outras ausências: Feitiço e Del Debbio, dois grandes atletas dos anos 30. A seleção, treinada por Píndaro de Carvalho, teve uma participação pífia, como veremos abaixo ao analisar os resultados da Copa.



A imprensa dava destaque ao desentendimento entre paulistas e cariocas.



Apesar das manchetes mais otimistas, como vemos abaixo, os dois estados não chegaram a um acordo em torno da convocação dos jogadores para a Copa de 1930.


A FIFA e os mundiais


A Fifa foi fundada em 1904 e desde o começo os dirigentes pensavam em organizar um mundial com seleções nacionais. No entanto, foi apenas na presidência de Jules Rimet que o torneio saiu do papel, graças à luta do cartola francês. A Europa ainda estava abalada pela crise de 1929 e nenhum país do continente se interessou em receber a Copa. O Uruguai, campeão olímpico em 24 e 28, tinha disposição e foi o escolhido. A ideia era ter dezesseis seleções. No entanto, apenas treze equipes participaram do mundial. Da Europa, França, Bélgica, Romênia e Iugoslávia compareceram. Itália, Alemanha, Áustria, Hungria, Suíça e a Inglaterra não vieram. Os ingleses, os inventores do futebol moderno, consideravam o campeonato interno mais importante do que a Copa. Além dos quatro europeus e do Uruguai, o mundial contou com Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia, México, Estados Unidos, Chile e Peru.

O dia dia da Copa de 1930

O governo do Uruguai construiu o Estádio Centenário, em Montevideo, mas a obra só ficou pronta depois do início do mundial. A chuva retardou os trabalhos. A Copa de 1930 teve quatro grupos e jogos apenas em Montevidéu. O primeiro de cada chave estaria garantido na semifinal: 

1 - Argentina, França, Chile e México.
2- Brasil, Iugoslávia e Bolívia.
3- Uruguai, Romênia e Peru.
4- Estados Unidos, Paraguai e Bélgica.

A seleção brasileira, que vestia uniforme branco (a cor amarela só seria usada a partir de 1954, na Suíça), viajou para o Uruguai a bordo do navio Conte Verde. Segundo o jornalista Teixeira Heizer, autor de O Jogo Bruto das Copas do Mundo, a viagem demorou cinco dias. Por causa do frio, os jogadores não saíram das cabines e, portanto, não fizeram exercícios. Os europeus também enfrentaram uma epopeia para cruzar o Oceano Atlântico e chegar ao Uruguai. 

A reportagem abaixo destacava o apreço dos torcedores locais pela seleção brasileira.



Eram tempos de comunicação precária. Essa outra capa da Folha da Manhã dizia que nenhum paulista estaria na seleção. Como vimos, Araken Patusca à revelia do Santos foi para o mundial.


Essa outra nota falava sobre as possíveis punições que a Apea poderia sofrer por não ceder jogadores.






A Copa de 1930 começou no dia 13 de julho com dois jogos. A França goleou o México por 4 a 1, em Pocitos. Os Estados Unidos venceram a Bélgica por 3 a 0, no Parque Central. Os americanos contavam com jogadores escoceses naturalizados. Oficialmente, o primeiro gol da história da Copas é creditado a Laurent, da França. No entanto, outros arquivos consideram o gol de Mac Ghee, um escocês naturalizado americano, como o primeiro dos mundiais.

A seleção brasileira estreou com uma derrota para a Iugoslávia, por 2 a 1, no Estádio Parque Central. No outro jogo do dia, a Romênia venceu o Peru por 3 a 1.


O Brasil entrou em campo com Joel, Brilhante e Itália; Hermógenes,  Fausto e Fernando; Nilo, Poli, Araken, Preguinho e Teóphilo. Nessa nota, a imprensa destacava o frio que fazia na hora do jogo.



Conta a história que um integrante da comissão técnica levava bacias de água quente para o goleiro Joel não sofrer tanto com o frio durante a partida. O gol brasileiro foi marcado por Preguinho, do Fluminense, capitão da equipe nacional. Ele era considerado um atleta múltiplo porque também praticava basquete, vôlei, atletismo, natação e até hóquei. Preguinho era o apelido de João Coelho Netto, filho do escritor e poeta Henrique Maximiano Coelho Netto. Outro jogador de destaque da seleção era Fausto, conhecido como "maravilha negra". Ele se destacou no Vasco e no Flamengo. 


No dia 15 de julho, a Argentina venceu a França por 1 a 0 no Parque Central. Apesar da derrota, a atuação do goleiro francês Thépot era destacada pelos jornais. O gol argentino foi marcado por Monti que, quatro anos depois, jogaria a Copa pela Itália e seria campeão. O duelo entre Argentina e França contou com um árbitro brasileiro: Gilberto de Almeida Rego. De forma surpreendente, o juiz encerrou o jogo aos 84 minutos da etapa final. Em meio a reclamações e invasão de campo, um bandeirinha convenceu o árbitro do erro. A partida recomeçou, mas o placar ficou inalterado.




Aqui, o destaque para o time argentino:



Em 16 de julho, o Chile venceu o México por 3 a 0 e o jogo teve direito a manchete na Folha da Manhã e comentário:




Na opinião do jornalista Miguel dos Reis, o placar foi justo:




A seleção brasileira ainda jogaria contra a Bolívia. Mas a imprensa já falava na possibilidade da eliminação ainda na fase de grupos, dependendo do resultado da partida da Iugoslávia.


Os iugoslavos golearam a Bolívia por 4 a 0. Ou seja, o Brasil estava eliminado da Copa. Ainda no dia 17 de julho, os Estados Unidos venceram o Paraguai por 3 a 0 e também se garantiram na semifinal. Aqui, destaque para os dois jogos:


Nessa nota de jornal, uma análise sobre os favoritos para conquistar a primeira Copa da história:


Os jornais traziam ainda fotos de dois jogadores. Uma das imagens é a do uruguaio Andrade. A celeste olímpica tinha ainda um atleta chamado Héctor Castro, apelidado de "el manco", "maneta" em português. Ele não tinha parte do braço direito. Na foto seguinte, aparece o argentino Stábile que foi o artilheiro da Copa com 8 gols.






O dia 18 de julho é histórico. O Estádio Centenário finalmente foi inaugurado para a estreia da celeste contra o Peru. Os donos da casa venceram por 1 a 0, gol de Castro.



O estádio estava lotado. Os uruguaios jogaram com Ballesteros, Nazassi (capitão), Tejera, Andrade, Fernandez, Gestido, Urdinaram, Castro, Petroni, Cea e Iriarte. Em inúmeros locais do Centenário, o cimento ainda estava fresco. As marcas dos pés dos torcedores ficariam lá para sempre. 


No dia seguinte, em 19 de julho, o Chile venceu a França por 1 a 0 e a Argentina goleou o México por 6 a 3. Os jogos foram destacados pelos jornais no dia seguinte, quando a seleção voltaria a campo:


A seleção brasileira, já desclassificada, venceu a Bolívia por 4 a 0, em 20 de julho. A partida foi disputada no Estádio Centenário. Preguinho voltou a marcar e fez logo dois gols. Os outros dois foram de autoria de Moderato. O Brasil jogou com Veloso, Zé Luis e Itália; Hermógenes, Fausto e Fernando; Benedito, Russinho, Carvalho Leite, Preguinho e Moderato. O técnico Píndaro de Carvalho promoveu modificações na equipe, depois da derrota para a Iugoslávia. Apesar da vitória diante dos bolivianos, a seleção nacional encerrou a participação na primeira Copa em sexto lugar.

Aqui, uma charge ainda destacando o bairrismo São Paulo versus Rio de Janeiro:




No mesmo dia da vitória da seleção, o Paraguai ganhou da Bélgica por 1 a 0. Em 21 de julho, os uruguaios golearam a Romênia, 4 a 0, e garantiram vaga nas semifinais.


Essa nota ressaltava a possibilidade dos jogadores Joel e Teóphilo retornarem ao Brasil antes da delegação nacional.


No dia 22 de julho, a Argentina garantiu classificação para semifinal ao vencer o Chile por 3 a 1. Os Estados Unidos seriam os adversários na próxima fase. A outra vaga na final foi disputada entre Uruguai e Iugoslávia.



Aqui, a indicação dos árbitros para as semifinais:



Argentina e Estados Unidos se enfrentaram no dia 26 de julho. A disputa era cercada de expectativas.



O placar do jogo foi surpreendente: 6 a 1 para a Argentina. Gols de Monti, Scopelli, Stábile (2), Peucelle (2) e Brown para os Estados Unidos. 




Na mesma edição da Folha da Manhã, destaque para o duelo entre Uruguai e Iugoslávia:



O dia 27 de julho foi de festa para os uruguaios que estavam classificados para a final da Copa. O placar foi o mesmo da outra semifinal: 6 a 1. Gols de Cea (3) , Anselmo (2)  e Iriarte. A Iugoslávia marcou com Sekulic. No total, 78.091 torcedores estiveram no Estádio Centenário.



Já os jogadores brasileiros retornavam ao país e culpavam o frio pela derrota na Copa do Mundo:




Os Estados Unidos ficaram automaticamente com a terceira colocação. Conforme o livro do jornalista Teixeira Heizer, a Iugoslávia desistiu de disputar o jogo que decidiria a posição.

30 de julho de 1930. Uruguai e Argentina decidiram a primeira Copa da história. As duas seleções tinham disputado a final olímpica de 1928, em Amsterdam. A celeste venceu por 2 a 1. E agora?



Os torcedores argentinos cruzaram o Rio da Prata para assistir à finalíssima. Os uruguaios, no entanto, colocaram apenas 10 mil ingressos à disposição da AFA (Federação Argentina de Futebol). Uma estimativa indica que 30 mil argentinos foram para Montevidéu. O Centenário estava lotado: 90 mil torcedores. O árbitro John Langenus, da Bélgica, solicitou reforço especial de segurança. Como não havia ainda padronização das bolas, foi usada uma uruguaia e outra argentina, uma em cada tempo. O Uruguai saiu na frente com gol de Pablo Dorado (12 minutos). A Argentina empatou com Peucelle (aos 20 minutos) e virou o jogo com o artilheiro Stábile (37 minutos). Aos 12 do segundo tempo, Cea empatou o duelo. Iriarte marcou o terceiro dos uruguaios (23 minutos). Para desespero dos argentinos, Castro fechou o placar 4 a 2, aos 44 minutos. Os bicampeões olímpicos (1924-1928) eram os primeiros vencedores da Copa do Mundo. 



O presidente da Fifa, Jules Rimet, e o presidente do Uruguai, Juan Campisteguy, entregaram a taça (que só mais tarde levaria o nome de Jules Rimet) ao capitão Nazassi. A estatueta tinha sido confeccionada por um francês: Abel Lafleur. O Uruguai estava em festa. As sirenes dos navios eram ouvidas em toda Montevidéu.


TABELA COPA DE 1930


GRUPO A


13/07/1930 Montevidéu: França 4 x 1 México

15/07/1930 Montevidéu: Argentina 1 x 0 França

16/07/1930 Montevidéu: Chile 3 x 0 México

19/07/1930 Montevidéu: Chile 1 x 0 França

19/07/1930 Montevidéu: Argentina 6 x 3 México

22/07/1930 Montevidéu: Argentina 3 x 1 Chile


GRUPO B


14/07/1930 Montevidéu: Iugoslávia 2 x 1 Brasil

17/07/1930 Montevidéu: Iugoslávia 4 x 0 Bolívia

20/07/1930 Montevidéu: Brasil 4 x 0 Bolívia


GRUPO C


14/07/1930 Montevidéu: Romênia 3 x 1 Peru

18/07/1930 Montevidéu: Uruguai 1 x 0 Peru

21/07/1930 Montevidéu: Uruguai 4 x 0 Romênia


GRUPO D


13/07/1930 Montevidéu: Estados Unidos 3 x 0 Bélgica

17/07/1930 Montevidéu: EUA 3 x 0 Paraguai

20/07/1930 Montevidéu: Paraguai 1 x 0 Bélgica


SEMIFINAIS


27/07/1930 Montevidéu: Uruguai 6 x 1 Iugoslávia

26/07/1930 Montevidéu: Argentina 6 x 1 EUA


FINAL


30/07/1930 Montevidéu: Uruguai 4 x 2 Argentina


Fontes consultadas: 


- Acervo dos jornais Folha da Manhã e O Estado de S.Paulo (junho de julho de 1930);

- Livros: O Jogo Bruto das Copas do Mundo (Teixeira Heizer) e Todas as Copas do Mundo (Orlando Duarte).

O AUTOR


Thiago Uberreich é formado em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999). Começou a carreira, em 1996, na Rádio Eldorado de São Paulo (atual Estadão).  Passou pelas funções de redação, edição, reportagem e apresentação.

Em 2005, recebeu convite para integrar a equipe de reportagem da Jovem Pan. Participou de inúmeras coberturas e atuou como setorista no Palácio dos Bandeirantes. Desde março de 2016, apresenta o Jornal da Manhã (6hs às 10hs).

Apaixonado por futebol e história das Copas do Mundo, gosta de elaborar séries especiais.

Em 2010, venceu o prêmio Embratel, categoria Reportagem Esportiva, com a série Histórias das Copas, veiculada nos meses que antecederam o mundial na África do Sul.  Em 2011, levou ao ar a série "Vozes do Tri", sobre a conquista da Copa de 70. Em 2012, fez a série "50 anos do bi". Em 2015, produziu "A Copa que nunca acabou", sobre o mundial de 1950. Em 2016, conseguiu reunir os áudios na íntegra dos seis jogos da seleção brasileira em 50. Possui um dos maiores acervos pessoais de vídeos de futebol do país. São 4 mil horas de gravação (2 mil DVDs).

Críticas, sugestões ou correções: tuberreich@gmail.com